sexta-feira, 22 de novembro de 2013

DA SAUDADE - GUILHERME MORAIS.



Da primeira vez, gravamos "Delírio e Destruição". Guilherme deveria estar mais confortável com a vida, criando canções que se tocam perfeitamente sentado num banquinho e uma cervejinha ao lado enquanto se perdia no movimento das flores, do mar, da dança e da beleza feminina. É um colega meu da época do ensino médio, mas que só foi se tornar amigo de verdade depois que fui morar próximo de sua residência.

Sousas e Joaquim Egídio. Guile no primeiro, eu no segundo, uma pequena estrada nos separa. "Cola ae", diz num telefonema e rapidamente estamos juntos falando merda e, às vezes, bem às vezes, criando canções. Geralmente ele pega no violão e faz malabarismos com seus estudos técnicos, enquanto eu fico olhando e viajando no que sempre me parece não ter o menor sentido. Daí ele diz "cara, está na hora de fazer um disco novo, algo diferente do que fiz no Delírio, e você vai produzir novamente". 

Produzir o Guilherme é fácil. Além de ser um compositor foda, ele confia em mim. A confiança é a base de toda produção musical. No fim das contas, você ter o culhão de falar pro artista "cara, isso não está certo" é tão intenso quanto ouvir do artista um "não, acho que esse caminho que você está propondo está ruim". Conosco veio Leo Costa, um dos maiores músicos que conheço, nos ajudando a interpretar cada detalhe (muitos) da música de Guilherme. 

Mas antes, uma coisa. Toda a história por trás da verdade musical é prensada sem a menor mentira na fita (ou HD, como queira). A atmosfera é viva e a música vibra em cada canto do espaço em que se está. É por isso que muitos estúdios de renome geram sempre a mesma coisa - o espaço usado é quase como um pré-set para nada dar errado. Na minha filosofia, erro é subjetivo e é só um detalhe. 

Guilherme mora numa espécie de condomínio semi fechado em Sousas, a caminho do São Conrado. Ao lado de sua casa está a casa que seu avô construiu. Uma charmosa construção dos anos 70, com árvores em frente, numa rua sem saída. Uma casa cheia de vida e história, tempos que ajudam a moldar o universo interno de cada um de nós. Lembro quando, não sei porque, estávamos falando da morte e ele mencionou que o avô estava na UTI. Partiu, como deve ser feito nesse mundo carnal e material. Disse que chorou, pensando "porra, meu avô morreu". Foi bem na época em que realmente achei que ia perder meu pai e que já estava me preparando para tal coisa. Só que meu pai não se foi. Apenas um estalo, um momento, uma nova chance para eu tratá-lo devidamente como o meu PAI. Guilherme disse, também, que se espantava com a roda da vida, em momentos em que ele se via ensinando ao pai coisas que o velho não sabia, e o mesmo baixando a cabeça e reconhecendo tal erro. 



Somos pó de estrelas. Somos porra nenhuma. Apenas pai e filho. Mulheres não entendem muito bem a dureza que é a aceitação do amor entre dois homens, mesmo sendo pai e filho. O pai sempre é durão, quer que o filho seja um guerreiro. O filho sempre quer ser como o pai, mas em momentos estranhos que a vida proporciona sempre acaba querendo tomar as rédias da razão. Então fiquei imaginando a relação do pai do Guilherme com o seu avô. O construtor da casa tinha o hábito de se trancar no último quarto da casa. Certo dia ele não saiu. Sua mulher - obviamente vó do Guilherme - ouviu um gemido característico e pensou "ele está enfartando". Chamou a família. O filho do construtor foi lá e arrombou a porta. O velho estava estirado no chão. E o fim, dias depois, foi o começo de uma nova história. 

Guilherme queria que seu novo disco tivesse um ar real. Queria que fosse, além de tudo, ao vivo, com overdubs apenas para as vozes. Fui conhecer a tal casa e nos encaixamos perfeitamente na cozinha, sala de jantar e no corredor. Os ecos pairavam sobre o fone, como se a casa respirasse. Eu sentia algo de diferente e o tempo todo eu pensava "o velho está aqui, curtindo". A casa estava para vender, então nos apressamos para usar toda aquela ambiência de casa vazia de material, mas cheia de história. No quarto em que o velho enfartou nós fizemos a Câmara de Eco - joguei um sinal da voz do Guilherme via Direct Box para uma caixa amplificada da Antera e microfonei o sinal que dali saía. Depois tudo foi editado no computador. Em "Arranha Céu", temos um microfone no corredor especialmente para pegar a reverberação do bateria. 

Da Saudade é o disco que marca o fim de uma infância com a morte do vô. Todo o ódio que a morte carrega está nos berros de um cantor surpreendente, sem medo, sem pau mole. A leveza do amor entre pai e filho, vô e vó, mãe, irmãos e amigos. Estávamos ali, naquela casa, e há quem diga que o som não vazava e não incomodava. É o tipo de coisa que ninguém entende, apenas a fita. 

Uma semana depois que decretamos o trabalho encerrado, a casa foi vendida. 

DA SAUDADE. 2013. Mais uma produção que tive o imenso prazer de participar. Que venham os futuros!